como se só houvesse um pouco de corpo
Procuro mostrar a especialidade dessa alucinação e encontro isto: na noite de um dia em que eu ainda tinha olhado fotos de minha mãe, fui ver, com amigos, o Casanova de Fellini; eu estava triste, o filme me entediava; mas quando Casanova se pôs a dançar com a boneca, meus olhos foram atingidos por uma espécie de acuidade atroz e deliciosa, como se eu eu sentisse de um só golpe os efeitos de uma droga estranha; cada detalhe, que eu vi com precisão, saboreando-o até o fim, conturbava-me: a esbeltez, a tenuidade da silhueta, como se só houvesse um pouco de corpo sob o vestido achatado; as luvas amarrotadas de filosela branca; o leve rídiculo da pluma do penteado, esse rosto pintado e todavia individual, inocente: algo desesperadamente inerte e todavia disponível, oferecido, amante, segundo um movimento angélico de 'boa vontade'. Pensei então, irresistivelmente, na Fotografia. Julguei compreender que havia uma espécie de laço (de nó) entre a Fotografia e a loucura e algo cujo nome eu não sabia bem. Eu começava por chamá-lo: o sofrimento de amor. Não estava eu, em suma, apaixonado pela boneca felliniana?
*barthes - A Câmara Clara
*barthes - A Câmara Clara
3 Comments:
não estamos nós, em suma, sempre apaixonados por um corpo que é pouco? o sofrimento do amor. as mãos que tocam o que está, para sempre, inerte. saudade de vc. um beijo.
que filme é esse?
Casanova.
do Fellini
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