Thursday, May 24, 2007

o que cala

No ultimo momento ela me perguntou se Bernard Faucon calava algo nas suas imagens. E se sim, o que seria. Citou ainda, para fazer esta pergunta, Blanchot e o canto das sereias. Ulisses amarrado a escutar as sereias: o fascínio.
Sem resposta, calei momentaneamente a pergunta.

Mas, eis a verdade: Não se cala nada sem que aquilo que foi silenciado volte para nos assombrar. Na arguição ela me disse: “você, em seu texto, já respondeu esta questão.” Foi terrível. Com esta fala e aquela pergunta, ela tornou o meu texto tão opaco quanto as águas de um oceano que esconde sereias. O texto que eu escrevi guardava segredos que nem eu sabia. Desde então não posso mais fechar a última página nem colocar um ponto final. Estou aprisionada no que minha escrita silenciou àquela que a realizou.

Perguntei se não seria a morte. Aqueles manequins não-vivos, ao me darem um suplemento de vida, não silenciavam a morte? Também perguntei se não seria a realidade e o tempo do mundo. Ao me levarem a fabular uma memoria fantástica, um tempo nem passado nem futuro, aqueles manequins não silenciavam a realidade?
A estas duas perguntas poderia responder que sim, não fosse a presença dos meninos vivos em algumas imagens. O corpo de carne e osso devolvia-me para o tempo do mundo, anunciava-me a fatalidade do tempo e a impossibilidade de ser eternamente criança.
Aquelas respostas eram apenas parcialmente verdadeiras.

Então, o que cala e que eu, no meu texto, já disse?
Sou eu. Sou eu quem cala nas imagens de Faucon. Resposta deveras estranha porquanto trata-se de um texto escrito em primeira pessoa. Mas o que se deveria perguntar não é o sujeito da frase, e sim se de fato sou eu essa primeira pessoa.
E não sou.
Quero dizer: o que nessas imagens e o que neste texto que as descreve diz da pat m.? Nada. Não se adivinha em suas páginas a mineira que vive em São Paulo; a moradora de um prédio cujas paredes finas cultivam a neurose e a inimizade de seus moradores; a vizinha de uma padaria que tem nome de filme japonês, a frequentadora de sessões de cineclube, nem a menina ansiosa de nascença. E no entanto, essa, com um ou outro dado a mais, é a minha realidade. Se fosse para escrever uma “redação” sobre mim, seria isso o que eu diria.

Mas ali o sujeito da frase sou eu tornado sujeito impessoal. Entrar no imaginário é morrer, escreve Blanchot. E ali sou eu, num devir criança, tragada pelo reino do imaginário. Naquelas imagens e no texto que as descreve eu, pat m., morro. Mas, tão somente para nascer novamente uma outra, um outro: criança atemporal e universal. Eterna criança que não fui e me torno, vivo em um mundo outro onde as paredes não têm espaço para relógios. Não tenho controle sobre o meu corpo, não sei dizer o dia, o mês ou o ano. Também não sei distinguir o verdadeiro do falso. Perdi todas os sistemas de comparação. E ainda sim, vivo verdadeiramente no interior do meu olhar as afecções de uma infância inexistente, mas que me requisita para si.

Quando o corpo vivo aparece, é a este sujeito impessoal que ele se dirige, é a ele que ele anuncia a morte e a irrealidade. No momento de sua chegada eu já é outro. Talvez ele me devolva ao tempo do mundo, talvez ele me relembre de minha própria realidade. Mas o movimento é inverso: eu só volto a ser eu quando expulsa daquelas imagens.

Apenas a partir daí é possível compreender a primeira pessoa do texto e a suspeita que há muito vinha cultivando de que só seria possível falar de fotografia em primeira pessoa. Talvez eu devesse acrescentar um novo ponto ao meu ensaio de conclusão. Nele diria que o que soa como demasiado intimista, o que parece ser apenas o relato de uma experiência pessoal não é a afirmação egocêntrica de um sujeito de fala. Muito pelo contrario, é a única possibilidade de trazer ao plano do discurso o que o mutismo fotográfico cala. E se fosse citar Barthes, diria: “a expansão metonimica do punctum”.

O que cala em Faucon sou eu, mas também todos os olhares que se deixam afetar.

1 Comments:

Anonymous Anonymous said...

linda, delícia te ler. saudade. carol

6:35 AM  

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